Formação, o Pecado da Auto-Prescrição

“A imaginação é a única arma na guerra contra a realidade”, Anónimo

Imagine um país com uma população que apresenta dos indicadores mais baixos da União Europeia em termos de saúde. Imagine, ainda, que para resolver esta grave situação se criava um Fundo Social de Saúde para co-financiar o pagamento dos medicamentos e dos cuidados de saúde. Nesse país, os financiamentos são atribuídos à indústria farmacêutica para produzir os medicamentos, que são distribuídos através das farmácias, assim como às entidades prestadoras de cuidados de saúde. Na generalidade dos casos, os medicamentos e os cuidados de saúde são comparticipados a 100%, havendo mesmo medicamentos e cuidados de saúde que dão direito a que os utentes recebam um subsídio de saúde em dinheiro.

Os utentes do sistema de saúde, para resolver os seus problemas, em vez de consultar um médico para diagnosticar a doença e prescrever o tratamento adequado, preferem consultar catálogos de medicamentos e fazer a sua auto-medicação, com a finalidade de receberem os subsídios de saúde disponíveis. Neste sistema, como os subsídios são pagos no final do tratamento, os utentes fazem como os doentes com bulimia, tomando os medicamentos e deitando-os fora logo a seguir. Este país imaginário, felizmente não existe. Esta caricatura visa, somente, chamar a atenção para uma prática que continua a dominar o mundo da formação em Portugal. Em poucas palavras, é o pecado da auto-prescrição. Basta recordar o que se passou no sector da formação após a adesão á União Europeia, com os apoios do Fundo Social Europeu, para perceber, apesar do grotesco da caricatura, que há traços comuns.

Senão vejamos. Os financiamentos do Fundo Social Europeu visavam aumentar o baixo nível de qualificação dos portugueses. Nesse sentido, foram concedidos avultados apoios financeiros a empresas, entidades formadoras e formandos. Nesse contexto de grande disponibilidade de financiamentos, muitas empresas promoveram formação para os seus trabalhadores numa óptica clara de “caça ao subsídio”, uma prática que acabou por envolver também entidades formadoras e formandos. Muitas entidades formadoras conceberam e organizaram a sua oferta de formação tendo em atenção os critérios de financiamento do Fundo Social Europeu, optando por promoverem as acções mais vantajosas em termos financeiros e não as que eram necessárias ao crescimento do país. Para atrair os formandos, a divulgação das acções de formação, através de anúncios na imprensa e de catálogos, tinha como foco central não os conteúdos da formação mas os subsídios atribuídos aos formandos.

Em consequência, a procura de formação orientou-se para os subsídios, com muitos jovens e trabalhadores a tornarem-se “formandos profissionais” frequentando dezenas de acções para receberem os respectivos subsídios, em alguns casos bem superiores à remuneração conseguida no exercício das respectivas profissões. Também nesta situação, tal como acontece com os doentes com bulimia, os formandos recebiam a formação e esta era “deitada pelo cano” logo que possível. Hoje, a realidade é bem diferente por força das alterações entretanto introduzidas. Mas, é importante recordá-la para se perceber como se enraizou a prática da auto-prescrição na formação, a qual marca o paradigma actual, sem que os intervenientes se apercebam dos seus efeitos perversos. Vejamos um exemplo do nosso quotidiano. Ainda hoje, quando se faz um levantamento de necessidades de formação, é frequente a resposta dos serviços envolvidos vir sob a forma de uma lista de acções de formação escolhidas pelos trabalhadores, muitas vezes retiradas de um catálogo numa óptica de auto-prescrição.

Esta situação não é, infelizmente, tão rara como se pode pensar, e resume o levantamento de necessidades de formação ao somatório das auto-prescrições dos trabalhadores. Deste modo, não é preciso ser especialista em formação para perceber que, só por milagre, a formação produzirá as competências necessárias para sustentar a estratégia de desenvolvimento das organizações. No entanto, começam a surgir exemplos que traduzem a desejada mudança de paradigma. A Loja do Cidadão foi um organismo criado para revolucionar os modelos de prestação de serviços públicos, e é um caso de sucesso reconhecido por todos pela sua excelente qualidade de serviço. Um dos segredos do sucesso residiu no facto da formação ter sido concebida e ministrada para sustentar uma estratégia de qualidade de serviço, que não de resumiu, obviamente, à componente formação.

Pelo contrário, a generalidade da administração pública não apresenta os mesmos resultados em termos de qualidade de serviço, apesar dos significativos investimentos que anualmente são feitos em acções de formação. Perante esta constatação, porque não se abandonam as práticas erradas de levantamento de necessidades e de auto-prescrição da formação e se adoptam as boas práticas da Loja do Cidadão? Copiar também pode ser um acto virtuoso. Se, pela caricatura inicial facilmente se compreendem os malefícios da auto-medicação, porque se continua a considerar a auto-prescrição da formação como a “norma” a seguir e não como um pecado capital que constitui um forte obstáculo ao desenvolvimento dos recursos humanos, das organizações e do país.

Porque não ousar “imaginar” um país com uma população que apresente dos indicadores mais elevados da União Europeia em termos de qualificações e competências …

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