Formação profissional
Músico é aquele que toca o que não está na pauta. É curioso, mas foi esta frase de Miles Davis que me ocorreu quando acabei de ler a proposta de Sistema Europeu de Créditos para a Educação e Formação Profissional, conhecida por ECVET (European Credits for Vocational and Educational Training).
A proposta surge na sequência da aprovação da Estratégia de Lisboa que, em 2000, definiu como objectivo para a União Europeia tornar-se no espaço económico do conhecimento mais competitivo e dinâmico do mundo.
Para a concretização deste ambicioso objectivo, até 2010, a União Europeia apostou na implementação do Processo Bolonha, que visa a criação de um espaço europeu de ensino superior, e do Processo Copenhaga, no domínio da educação e formação profissional. Os dois processos têm um objectivo comum: assegurar a permeabilidade, a transparência e a mobilidade. Para o ensino superior foi criado o Sistema Europeu de Transferência de Créditos ECTS (European Credit Transfer System). Para a formação profissional está em consulta pública a proposta do Sistema ECVET, que deverá ser aprovada no segundo semestre de 2007, ou seja, durante a Presidência portuguesa.
Aos sistemas ECTS e ECVET, juntam-se os quadros nacionais de qualificações, os catálogos de referenciais profissionais e o quadro europeu de qualificações EQF (European Qualification Framework).
Dito deste modo, parece que o sucesso da Estratégia de Lisboa passa por cada cidadão ter uma qualificação europeia. Assim, ter ou não ter (qualificação) é a questão.
Tenho dúvidas. Nesta altura, além da frase de Miles Davis, lembro-me do exemplo de Steve Jobs e Bill Gates, duas grandes referências da denominada economia do conhecimento. Nenhum dos dois tem qualificação superior, mas possuem “competências únicas”, um capital essencial para a diferenciação no competitivo mercado global. O que diferencia tanto Steve Jobs como Bill Gates é o facto de tocarem o que não está na pauta.
Estes, e outros exemplos, evidenciam claramente que as pessoas são o activo mais importante na economia do conhecimento. Enquanto que, no passado, a competência de um profissional dependia, quase que exclusivamente, da utilização dos seus conhecimentos, hoje, depende cada vez mais da riqueza do capital humano da organização e da sua rede de conhecimento.
Apesar de ser verdade que as empresas e organizações sempre utilizaram o conhecimento, é cada vez mais verdade que o desafio que enfrentam é o de produzir continuamente conhecimento para continuarem competitivas. Saber gerir a articulação das competências individuais, o conhecimento colectivo e as redes de cooperação é a questão. Uma orquestra não vale pelas qualificações dos seus músicos. Vale, essencialmente, pela qualidade da interacção dos músicos que, colectivamente, tocam o que não está na pauta.
Neste contexto, será que uma abordagem europeia centrada nas qualificações permitirá dar o contributo necessário para a Europa se tornar na economia do conhecimento mais desenvolvida do mundo? Será que ter qualificação é suficiente?
Penso que não, por duas razões. A primeira, tem a ver com o facto dos sistemas de qualificações serem insuficientes para desenvolver o capital humano. Pensar em qualificações é pensar em termos estáticos, de stocks. A questão é pensar em termos de processo, de fluxos. Daí que alguns investigadores afirmem que se produzem muitas qualificações e poucas competências. Quer isto dizer que a preocupação tem sido atribuir certificados de qualificação, tanto no ensino como na formação profissional, sem que a Europa desenvolva as necessárias competências individuais e colectivas. Mais, o lema tem sido: todos diferentes, mas todos iguais em qualificações, moldados da mesma forma.
O desemprego dos jovens com qualificação escolar e, em especial, dos licenciados, parece evidenciar que ter qualificação já não é suficiente. A integração profissional depende cada vez menos dos certificados de qualificação, e mais da aquisição nas empresas e organizações das competências necessárias à adequada integração. Os certificados só fazem a diferença quando obtidos numa das escolas de referência mundial.
A segunda, diz respeito aos efeitos negativos dos sistemas de qualidade, que ganham outra dimensão quando o objectivo é desenvolver o capital humano da Europa. De facto, os sistemas acima referidos mais não são do que sistemas de garantia da qualidade do ensino e formação profissional e do ensino superior. Contudo, não podemos deixar de ter presente que em qualquer processo de garantia de qualidade, o que se controla não é só a qualidade do produto ou serviço. Acima de tudo, controla-se a qualidade do pensamento. E sem pensamento não há conhecimento.
Hoje, é consensual considerar que o capital humano é o maior activo das organizações. Se assim é, será que faz sentido continuar a procurar desenvolver sistemas de padrões? Faz sentido, falar de sociedade do conhecimento e, ao mesmo tempo, criar sistemas de qualificações que mais não fazem do que promover o pensamento único nas abordagens de desenvolvimento do capital humano?
É oportuno lembrar que o sucesso da Internet tem a ver com o facto de não haver qualquer sistema de controlo de qualidade do conhecimento. Com a Internet todos podem partilhar ou colaborar na produção de conhecimento, como acontece com o Linux, a Wikipedia, e o YouTube, independentemente das suas qualificações. Basta que o contributo seja reconhecido como útil pela rede. Por outras palavras, o que interessa é que a rede produza conhecimento a partir das competências individuais e relacionais.
O que se observa, na economia do conhecimento, é que “a inovação e a criatividade são os verdadeiros motores do desenvolvimento económico” como escreve Schumpeter. Mas, um ambiente favorável à inovação e à criatividade não se fomenta com complexos sistemas de qualificações. Uma Europa líder da economia do conhecimento não se faz com a razão, faz-se com a emoção.
Em síntese, não basta que todos os europeus toquem o que está na pauta. Tocar como todo o mundo toca não tem emoção, não marca a diferença e, mais grave, paralisa o pensamento. O desafio da Europa é tocar o que não está na pauta.
“Todo o conhecimento começa com o sonho. Sonhar é coisa que não se ensina.” Rubem Alves
Etiquetas: bill gates, capital humano, competências colectivas, economia conhecimento, ects, ecvet, eqf, estratégia lisboa, inovação e criatividade, processo copenhaga, qualidade formação, qualificação, steve jobs
16 Fevereiro, 2007 às 1:52 am |
Um dos melhores textos sobre o tema que já li. Parabéns.