A cultura vence sempre. Esta frase de Marc Rosemberg, o conhecido guru da educação, ficou-me gravada na memória quando, em 2007, o ouvi na conferência eLearning Lisboa promovida pela Presidência da Comunidade Europeia. De tal modo ficou gravada que, sempre que se anunciam grandes reformas em Portugal, lembro-me automaticamente da frase como se de um alarme se tratasse.
O mesmo acontece sempre que se fala da reforma da Administração Pública, em especial do polémico SIADAP, o sistema integrado de avaliação de desempenho da Administração Pública que visa “o desenvolvimento coerente e integrado de um modelo global de avaliação que constitua um instrumento estratégico para a criação de dinâmicas de mudança, de motivação profissional e de melhoria na Administração Pública”.
Não duvido das boas intenções expressas na lei, mas o alerta de Rosemberg leva-me a reflectir sobre o optimismo dos seus autores. Basta fazer uma breve recapitulação do que foi a avaliação de desempenho na Administração Pública durante os últimos 25 anos, para surgirem naturais reservas quanto à concretização dos objectivos enunciados. Depois de 20 anos (1984-2003) a efectuar a avaliação de desempenho dos funcionários públicos com um modelo que, segundo os críticos, estava esgotado devido ao facilitismo e à falta de credibilidade, eis que surge, em 2004, o tão propalado SIADAP que introduz a gestão por objectivos na prática da Administração Pública.
Nessa altura, o SIADAP foi apresentado como o sistema capaz de concretizar o milagre da transformação de uma administração pública ineficiente, com um quadro de pessoal desmotivado, numa administração moderna e meritocrática, com funcionários competentes, responsáveis e motivados. Um cenário idílico criado por um discurso transbordante de optimismo. Nesse contexto, era difícil fazer de advogado do diabo e questionar tanto os princípios de excelência, universalidade e transparência como os objectivos de fomentar uma cultura de mérito e desenvolver os níveis de eficiência e qualidade dos serviços públicos.
Entretanto, em 2007, é aprovado o SIADAP 123 que revoga o sistema de avaliação de desempenho implementado em 2004. Com o novo sistema, a avaliação alarga-se aos serviços e aos dirigentes de nível superior, mas continua a ter por base a gestão por objectivos. Será desta que se concretizam os objectivos globais do SIADAP?
O meu alarme automático toca mais uma vez. Entretanto o alarme tornou-se mais sensível depois da leitura do artigo “Meritocracia à Brasileira” de Lívia Barbosa que reforça a ideia de Rosemberg. De acordo com a sua investigação, todos os sistemas de avaliação de desempenho dos funcionários públicos no Brasil tiveram vida curta. Acresce, ainda, que a génese da gestão por objectivos teve lugar nos longínquos anos de 1950 por obra de Peter Drucker. Segundo este modelo de gestão o planeamento é a base para a tomada de decisões, a definição dos objectivos e a avaliação de desempenho.
No entanto, hoje, os tempos são outros. Na actual economia do conhecimento a adopção da gestão por objectivos levanta duas questões centrais. A primeira tem a ver com a sua pertinência. Será que um modelo dos anos 50, concebido nos Estados Unidos para dar resposta às necessidades de processos produtivos industriais, onde a definição de objectivos mensuráveis e a medição de resultados era relativamente fácil, é adequado às necessidades de uma Administração Pública do século XXI? Por vezes fico com a sensação que o mundo está a mudar vertiginosamente mas as pessoas continuam a preferir a “segurança” dos modelos de gestão dos nossos antepassados. Parece que a modernização da Administração Pública se fará com modelos da era industrial.
A segunda questão é relativa à cultura. Será que um modelo de gestão com génese na cultura americana é adequado a organizações com o ADN cultural português? Tudo indica que não, dadas as evidentes diferenças culturais. Os Estados Unidos são uma sociedade de ideologia meritocrática onde o mérito individual é o principal critério de ordenação das hierarquias, ou seja, o mérito é o critério global e moralmente correcto em todas as circunstâncias. Pelo contrário, Portugal é uma sociedade onde o mérito não é a ideologia global. O mérito é o critério de ordenação apenas em determinadas circunstâncias. Por exemplo, até à recente alteração da lei das carreiras, a Administração Pública portuguesa estava organizada como um sistema que utilizava o mérito como critério para o acesso mas permitia a progressão por antiguidade. Estas diferenças fazem toda a diferença.
Em síntese, por um lado, o SIADAP dá primazia ao mérito. Mas, por outro lado, a meritocracia não é uma prática legitimada socialmente pelos portugueses. A óptica de igualdade da sociedade portuguesa, bem expressa na expressão “todos diferentes, todos iguais”, não reconhece a construção de hierarquias baseadas no mérito como pretende a legislação. Neste contexto, é sem surpresa que se constata uma grande resistência à implementação do SIADAP. Segundo dados provisórios das Finanças, em 2006, cerca de 60 a 65% dos 740 mil funcionários públicos foram avaliados, ou seja, entre 444 e 481 mil. Curiosamente, no passado dia 23 de Julho, o governo anunciou que, em 2008, foram avaliados mais de 298 mil trabalhadores, um número bastante inferior aos divulgados em 2006. Mais curiosa é mensagem transmitida para a comunicação social: “A Função Pública avaliou no ano passado quase a totalidade dos seus funcionários”. Contudo, estes dados são enganadores. A taxa de 90,2%, refere-se aos 331 mil funcionários passíveis de avaliação pelo SIADAP. Em relação à totalidade dos funcionários públicos a taxa é, apenas, de 40,3%, o que demonstra claramente que a maioria dos funcionários públicos não é avaliada.
Mas há mais. Nos Estados Unidos a ideia de igualdade tem uma raiz jurídica. É um direito de igualdade perante a lei. Em Portugal, o conceito de igualdade tem um duplo sentido: é um direito jurídico e, acima de tudo, um objectivo social. Devido a esta óptica de igualdade radical, as pessoas consideram que as diferenças de desempenho resultam, essencialmente, das circunstâncias em que trabalham e não do seu mérito ou da sua vontade de realizar. Assim, os funcionários insatisfeitos por não conseguirem as classificações máximas tendem a justificar o seu desempenho com as suas circunstâncias. É caso para dizer, como Lívia Barbosa, “o desempenho não se avalia, justifica-se”.
Não é pois de estranhar que o regime de quotas seja o principal alvo das críticas ao SIADAP, com acusações de discriminação por parte dos trabalhadores e dos sindicatos, na medida em que não permite que todos os funcionários obtenham as classificações máximas. Daí que, em geral, os que não obtêm as classificações máximas não legitimam as classificações de “Excelente” e de “Muito Bom” dos outros funcionários. Por outras palavras, pode dizer-se que as quotas são o pomo central da discórdia. Perante esta realidade, o grande desafio não é se vence a cultura ou se vence o SIADAP. O desafio essencial da Administração Pública é criar um clima organizacional que previna a insatisfação e a desconfiança entre avaliadores e avaliados e que mobilize dirigentes e funcionários para a tão almejada modernização, sob pena de, a prazo, se destruir a credibilidade do novo sistema de avaliação de desempenho.
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